27/07/2022

PARIS MOSTRA O CAMINHO — REVER AS LEIS URBANÍSTICAS À LUZ DO PRINCÍPIO BIOCLIMÁTICO

Introdução

É claro que Paris não é Portugal, nem é o Porto. São escalas muito diferentes. Mas, guardadas as proporções, a revisão de decisões urbanísticas devido à necessidade de as colocar à altura da urgência climática aplica-se perfeitamente às nossas cidades. É o princípio bioclimático — mais espaços verdes, menos betão — que deve comandar o novo urbanismo de que precisamos.

Não basta celebrar pactos sobre o clima centrados na redução de emissões carbónicas, ao mesmo tempo que se continuam a aprovar projetos de construção que passam pelo abate indiscriminado de todas ou quase todas as árvores existentes num dado terreno e/ou pela impermeabilização intensa de solos até agora vegetalizados.

Embora poucos entre os que dizem combater a crise climática o reconheçam ou mostrem tê-lo compreendido, tão ou mais importante que a redução de emissões é a absorção de CO2 graças às árvores adultas, desenvolvidas, ou mesmo supostamente «velhas». Abater essas árvores julgando que é possível qualquer «compensação» com a plantação de árvores novas (que, sim, devem ser plantadas, mas não em «substituição» das abatidas) não passa de um sofisma, ou, pior ainda, de uma fraude e de uma mistificação.

A nossa cidade, as nossas cidades, precisam urgentemente de seguir o exemplo de Paris referido no artigo «Paris revê de A a Z...» (fonte: jornal Le Monde, 22 de abril de 2022).

No mesmo sentido aponta — e agora incidindo sobre a nossa realidade portuguesa e portuense — o artigo escrito pela Música e Cantora Capicua, nada e criada no Porto, publicado em crónica do Jornal de Notícias de 28 de junho de 2022 (sob o título «Quinta do Pinheiro»), um requiem ativo e enérgico por mais uma destruição no miolo da cidade consolidada e central — miolo cada vez mais árido, onde desde há muito vêm sendo destruídos ou mutilados os tradicionais quintais e logradouros (hortas, jardins, bosquetes) que foram ainda há alguns anos tão caraterísticos da cidade. Aliás, nos últimos oito anos, tem sido notória a aceleração desse processo de degradação. É preciso parar com a destruição abusiva (mesmo que «legalizada») da vegetação nas cidades.

Paris revê de A a Z o seu principal projeto de urbanismo, o futuro quarteirão de Bercy-Charenton

Sob pressão dos ecologistas, Anne Hidalgo [presidente da câmara municipal de Paris] reduz a metade a área de escritórios e de habitação no futuro quarteirão de Bercy-Charenton, e prevê mais espaços verdes. O processo servirá de aferição para os futuros projetos urbanísticos parisienses.

Em Paris, deveria ser «a urbanização do século». Um verdadeiro sonho para os empreiteiros. Seis imensas torres de escritórios, hotéis, habitações, uma piscina, uma escola . . .  É certo que essa urbanização foi confirmada. Mas numa configuração totalmente diferente daquela que foi votada em 2018 pelos vereadores de Paris. Afinal, haverá o dobro dos espaços verdes previstos, e duas vezes menos escritórios e habitações, anunciou Emmanuel Grégoire, primeiro adjunto da presidente, Anne Hidalgo, na quinta-feira 21 de abril de 2022. O principal projeto urbanístico da capital é revisto do princípio ao fim.

O que está em jogo ultrapassa os 80 hectares do 12.º Bairro (arrondissement), encurralados entre a A4, uma variante monstruosa, as vias férreas, e prolongados por uma zona de 12 hectares, em plena reformulação também ela, e que entra pela comuna (município) de Charenton, do outro lado da via circular. O caso deverá servir de «demonstração» para as próximas grandes urbanizações de Paris, indicou Emmanuel Grégoire. Constituirá uma primeira aplicação das novas regras de urbanização, que devem ficar  gravadas em pedra márnore no plano local de urbanismo «bioclimático», daqui até 2024.

Quando do debate sobre o projeto inicial, em 2018,  as paredes dos Paços do Conselho tremeram. A direita e os ecologistas tinham vigorosamente contestado uma nova «densificação» de Paris, e considerado anacrónica a construção de torres  até à altura de 180 metros. O plano só conseguiu ser aprovado por 5 votos de diferença . . .  para logo depois ser posto em causa. Quando das negociações entre as duas voltas das eleições municipais de 2020, os ecologistas tinham posto como condição do seu apoio a Anne Hidalgo o regresso da totalidade do projeto à estaca zero.

Nem uma única torre

Os esboços revelado por Emmanuel Grégoire constituem o fruto dessa reformulação. Os ecologistas conseguiram o que pretendiam: nem uma só torre, muito menor construção, pelo menos 45 por cento de espaços vegetalizados, escritórios suscetíveis de um dia serem transformados em habitação . . .  «Partimos de uma boa base, regozija-se Emmanuelle Pierre-Marie, a presidente do 12.º Bairro (eleita pelo partido verde ecologista). 
Quanto aos aliados comunistas, cuja prioridade é a habitação, estão menos deslumbrados: «Aceitámos uma diminuição clara das áreas para habitações, não iremos mais longe que isso», avisa o seu líder Nicolas Bonnet-Oulaldj. Quanto à direita, mantém-se cética. «O resultado da redução parece ainda hiperdenso», comenta Valérie Montandon, vereadora eleita pelo 12.º Bairro. «Será de facto compatível com o futuro plano de urbanismo? Duvido.»

Do projeto desenhado pelo arquiteto britânico Richard Rogers, pouco resta. Adeus aos seis arranha-céus que deviam replicar a torre de 190 metros a erguer do lado de Charenton. Os edifícios de habitação não irão além de 50 metros e os escritório terão como limite 35 metros. A ideia de um quarteirão sobre placas de betão [do tipo de Le Mirail, em Toulouse, em que as ruas são exclusivas para automóveis e os peões circulam sobre as placas em rigorosa separação dos automóveis], demasiado consumidoras de carbono, foi abandonada.

O solo permeável será preservado ao máximo, bem como o património ferroviário, incluindo a antiga estação de mercadorias de Rapée.  A imobiliária Sogaris projeta instalar aí um centro logístico de 17 000 m2 em ligação direta com a ferrovia.

No total, o número de habitantes e de empregos a instalar caiu para menos de metade. Preveem-se agora 3500 habitantes e 3900 empregos. Cerca de 2 200 pessoas suplementares poderiam alojar-se em escritórios reconvertidos se a via circular acabar por transformar-se em alameda urbana como sonha Anne Hidalgo. Finalmente, o jardim de 2 hectares, todo ele no sentido do comprimento, de Michel Desvignes, é substituído pela instalação de um bosque num parque em solo permeável.

Nada está fixado

Quanto à abertura da rua Baron-Le-Roy, permanece como elemento-chave do projeto, cabendo-lhe a possibilidade de cerzir Paris e Charenton, sendo que, atualmente, a rua vai acabar num muro. A prazo, Emmanuel Grégoire tem em mente reservar essa nova via aos pedestres, ciclistas e autocarros.

A redução em altura e em área  construída dos edifícios — de 515 000 m2 para 230 000 m2 poderia ter provocado o encarecimento para a Cidade desse projeto, que assim não poderá retirar tanto dinheiro dos promotores como tinha imaginado. Na realidade o défice previsível da operação acaba por diminuir, ficando reduzido a 150 milhões de euros, garante o primeiro assessor. Como? «Retirámos tudo o que era acessório.» O abandono de uma passagem entre a rua Baron-Le-Roy e a rua de Charenton que possibilitaria um ganho de cinco minutos aos pedestres permite economizar 80 milhões de euros. O novo traçado em curva da rua Baron-Le-Roy evita  ter que deslocar um cabo de alimentação elétrica de muito alta tensão. O Estado prometeu também autorizar a Cidade, a título excecional, a não construir qualquer ponte ou túnel para transpor vias férreas que não são já exploradas. Por fim, a sociedade francesa dos caminhos de ferro (SNCF) deverá vender os seus terrenos a mais baixo preço.

Para lá destas grandes diretrizes, nada está ainda fixado. Na melhor das hipóteses as obras começarão em 2025, estando as primeiras entregas previstas para 2028 ou 2030.

 

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